sexta-feira, 8 de outubro de 2010

A lista



Faça uma lista de grandes amigos
Quem você mais via há dez anos atrás
Quantos você ainda vê todo dia
Quantos você já não encontra mais...

Faça uma lista dos sonhos que tinha
Quantos você desistiu de sonhar!
Quantos amores jurados pra sempre
Quantos você conseguiu preservar...

Onde você ainda se reconhece
Na foto passada ou no espelho de agora?
Hoje é do jeito que achou que seria
Quantos amigos você jogou fora?

Quantos mistérios que você sondava
Quantos você conseguiu entender?
Quantos segredos que você guardava
Hoje são bobos ninguém quer saber?

Quantas mentiras você condenava?
Quantas você teve que cometer?
Quantos defeitos sanados com o tempo
Eram o melhor que havia em você?

Quantas canções que você não cantava
Hoje assobia pra sobreviver?
Quantas pessoas que você amava
Hoje acredita que amam você?

(Oswaldo Montenegro)

sábado, 25 de setembro de 2010

Eu tenho um amor 84, charing cross road



Eu já tive um amor à distância, já usei a internet com essa finalidade e me envolvi afetivamente com alguém. Confesso. Sim, já gostei tanto de alguém sem conhecer, e era tanto que não podia haver tanto. Até que conheci e foi inesquecível, enquanto durou.

Sempre associei o gostar ao conhecer. E agora vem a Lulu que há anos conheço sem conhecer. Quem é essa desconhecida que tem me deixado tão feliz ao ouvir suas canções nas ruas que hoje caminho?

Eu não sei. Sei só que ela existe como algo real por fora e a certeza de que tudo é sonho, como algo real por dentro. Sei que ela está ali bem perto, ou aqui mesmo do meu lado, eu posso sentir isso. Às vezes ela me olha esquisito como se quisesse saber mais de mim e me faz perguntas vagas querendo chegar a algum lugar que ainda não sei ao certo onde é.

E se soubesse, de que adiantaria? Continuaria a responder-lhe as perguntas que eu mesmo já não faço, a oferecer-lhe as respostas que não respondem coisa alguma porque a vida é um enigma a ser decifrado. E o amor também.

Mas o que é mesmo que ela vai fazer com tantas informações sobre mim? Vai desenhar o meu perfil numa folha de papel em branco? Que cores usará para pintar minhas alegrias, tristezas, seriedades e impaciências de ariano?

Reconhecerá a calmaria aparente dos meus olhos que ocultam a vontade de vida a ser vivida? Sondará meus gestos? Calçará meus sapatos medindo com cuidado o tamanho das pegadas deixadas por mim no seu coração delicado? Rondará minha cama, feito fera faminta enquanto durmo? Velará meu sono com olhos de ternura e cuidado? Não sei, não sei...

O pouco que sei a respeito dela confunde-se com o muito que sinto quando imagino escutar sua voz, cantarolando suas canções, e que belas canções... E volto à internet cheio de propósitos procurando aquele vídeo em que ela diz: “se por acaso me vires por aí, disfarça e finge não ver...”

Mas hoje eu sou diferente do que eu era no tempo que não havia tanto... O que me fez ser diferente do que eu era? Diferente daquele caminhante sempre indo em linha reta, sempre adiante? Mas pra onde ia mesmo aquele moço cheio de certezas e verdades incontestáveis com seu olhar altaneiro e firme?

Ele pouco prestava atenção nas coisas do lado e a vida, às vezes, está nas coisas do lado, na paisagem da janela, à esquerda de quem vai, à direita de quem vem... E esse moço que fui muitas vezes nem sequer olhou de lado.

O sentir e o desconhecer misturam-se no mesmo caldeirão e eu já não sei mais se de fato eu não a conheço plenamente sem nunca ter visto! Talvez ela seja uma espécie de “meu 84, Charing Cross Road”.

É isso, eu tenho um amor 84, Charing Cross Road. E quem não sabe o que é isso precisa ver ou rever o clássico filme com o Anthony Hopkins e a Anne Bancroft.

Lulu*, feliz aniversário.

Beijos

Teu veleirinho hopkins

(* Luanda Cozetti)

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Um cafezinho com Adélia


Hoje fui atropelado por esse poema. Um amigo, dos bons, e daqueles que a gente demora anos para encontrar ao vivo por conta dessas coisas do mundo virtual me mostrou.

Certamente nos livros que aqui tenho da Adélia não consta esse poema, ou será que nunca tinha lido antes com olhos de hoje? Enfim, atropelado que estou já não sei, só sei que vale a pena ler e reler cada sílaba:


Quando fui ferida,
por Deus, pelo Diabo, ou por mim mesma,
- ainda não sei -
percebi que não morrera, após três dias,
ao rever pardais
e moitinhas de trevo.
Quando era jovem,
só estes passarinhos,
estas folhinhas bastavam
para eu cantar louvores,
dedicar óperas ao Rei.
Mas um cachorro batido
demora um pouco a latir,
a festejar seu dono
- ele, um bicho que não é gente -
tanto mais eu que posso perguntar
Por que razão me bates?
Por isso, apesar dos pardais e das reviçosas folhinhas
uma tênue sombra ainda cobre meu espírito.
Quem me feriu perdoe-me.

(Adélia Prado)

domingo, 19 de setembro de 2010

Um domingo com os trovadores urbanos



Hoje passei o dia quase todo ouvindo os Trovadores Urbanos.

Parei nessa canção e não consegui parar de ouvir repetidas vezes. Admiro muito o trabalho deles, muito mesmo. Sem falar das visitas que eles fazem ao hospital do câncer e outras instituições levando a música da forma mais sublime que conheço. Trabalho delicado. Muito. Eis a letra da bela canção do Juca e Eduardo.


Peregrino

Vim te buscar na luz
Clara do farol
Que ilumina a noite.
Seguir teu rumo
E ao luar com luz de sol
Tão logo o dia se foi
Te trouxe a palavra verdadeira
E minha estrela derradeira
Como um peregrino saído da escuridão.
Vim depois de todas as fronteiras
Vim, pois te busquei a vida inteira
Vim como um menino
Que encontra o teu coração.

(Juca Novaes e Eduardo Santana)

terça-feira, 7 de setembro de 2010

A felicidade é como a flor do caju




Não é triste o lugar onde eu me encontro, nem é turva a nuvem do meu caminho. Às vezes, fico quieto olhando uma pedra ao chão caindo e um cajueiro balançando e suas folhas me sorrindo...

A minha felicidade é como a flor do caju que se abre no sol da manhã, sem pressa, como quem cumpre o seu papel no teatro da natureza: despojar-se ao sol, à chuva, ao vento, à lua.

A minha felicidade é assim: semente de um roseiral que nunca esmorece, rígida e encorpada, fechando-se em pétalas de prece às intempéries da vida e em pétalas de fé no desamparo da morte.

E porque o tempo não passa no relógio celeste, a minha felicidade é secular, pétala solerte, que se dissolve no murmurar de um vento agreste. Sei que ela, a minha felicidade, na palma da mão cabe e sei também que por entre dedos me foge. Fugaz, fugidia é minha felicidade, louca varrida e doida curada que some no meio do dia e me escapa no cair da tarde.

- E o sol se pondo por detrás das colinas do outono -

Mas logo em seguida ela empina e sai pela rua vadia, rondando de casa em casa até o amanhecer do dia, no primeiro sinal da madrugada. Minha felicidade é dançarina, balé de cores suaves, e voa clandestina, no bico cinzento das aves.

Veleiro

sábado, 4 de setembro de 2010

A tal da leitura obrigatória...


Acho a frase ‘leitura obrigatória’ um conceito falso. A leitura não deve ser obrigatória. Devemos falar de prazer obrigatório? Por quê? O prazer não é obrigatório, o prazer é algo buscado. Felicidade obrigatória!

A felicidade, nós também buscamos. Fui professor de literatura inglesa por vinte anos na Faculdade de Filosofia e Letras da Universidade de Buenos Aires e sempre aconselhei a meus alunos: se um livro os aborrece, larguem-no; não o leiam porque é famoso, não leiam um livro porque é moderno, não leiam um livro porque é antigo.

Se um livro for maçante para vocês, larguem-no; mesmo que esse livro seja o Paraíso perdido -- para mim não é maçante -- ou o Quixote -- que para mim também não é maçante. Mas se há um livro maçante para vocês, não o leiam: esse livro não foi escrito para vocês.

A leitura deve ser uma das formas da felicidade, de modo que eu aconselharia a esses possíveis leitores do meu testamento -- que não penso escrever --, eu lhes aconselharia que lessem muito, que não se deixassem assustar pela reputação dos autores, que continuassem buscando uma felicidade pessoal, um gozo pessoal.

É o único modo de ler.

Jorge Luís Borges

Luanda Cozetti e a espera...



Quando estive em Lisboa, ano passado, fui conhecer o café à brasileira por conta dessa canção. Sentei perto da estátua de Fernando Pessoa, tomei um café, e por uns instantes esperei essa moça do vídeo.

Ela não sabia que eu estava lá, mas não saber fazia parte, queria que fosse casual. Infelizmente depois soube que naquele dia ela estava fazendo shows em outra cidade perto de Lisboa. Não importa, o que importa mesmo é que eu fui lá e esperei por ela, como imaginei um dia fazer.

Lulu, moça da flor lilás, você continua sendo o meu amor 84, Charing Cross Road, i love you. Qualquer dia voltarei para repetir tudo de novo.

sábado, 21 de agosto de 2010

Ah esse Albert...

Uma frase do Camus para pensar :

Jovem, eu pedia às pessoas mais do que elas me podiam dar: uma amizade contínua, uma emoção permanente.

Hoje sei pedir-lhes menos do que podem dar: uma companhia sem palavras...

Bom dia porque hoje é sábado!

:-)

sábado, 14 de agosto de 2010

Sobre o amor-feliz e outros quases...

Alguém já disse que a felicidade nos preenche de tal forma que não temos tempo para os versos. Sempre pensei que isso fosse pura balela, mas não é.

Um bom verso carece de uma dose de sofrer, mas não é sofrimento no sentido ruim da palavra, senão todos os morimbundos dos hospitais do mundo seriam grandes poetas e estariam nesse momento escrevendo suas odes...

Eu acho é que a felicidade anestesia um pouco aquela angustiazinha disfarçada de melancolia, aquele bichinho matreiro que nos corrói por dentro.

É que a vivência do amor-feliz nos toma tempo e quase nunca ficamos verdadeiramente sozinhos. Não digo que o sujeito simplesmente deixa de escrever, não deixa, não deixa. Mas quando escreve não mostra nem por um decreto!

É que o amor-feliz é muito constrangedor quando vestido em palavras.

Vinícius, o poeta que mais amou na vida, criava as mais loucas situações para se colocar em estado de amor-saudade, amor-veneração, amor-distante, amor-impossível, amor-dedicação. .. Mesmo quando o seu amor era presente, real, possível.

De tanto não saber lidar com o amor-feliz casou e se separou quase dez vezes. Não era o amor que acabava, era a felicidade que chegava e ele não sabia lidar com ela.

Ser feliz é muito difícil. Muito, muito mesmo. É muito mais fácil carregar o fardo do mundo nas costas, os pesares e os dissabores da alma pendurados no peito feito honraria.

E eu adoro uma melancoliazinha de beira de fogão, uma tristezinha vespertina, e até tenho saudade delas, mas hoje não consigo arranjar tempo para recebê-las. O amor-feliz veio me visitar e ficou por aqui.

Mas o verso, o verso mesmo... aquele que a gente arrisca a mostrar, só tenho feito muito de vez em quando. É que sou muito linear, não tenho montanha russa na alma, essa minha alma de ariano que precisa ter as quatro patas no chão. E vou repetir uma coisa que só um ariano pode entender: "como dói ser ariano."

Ando lendo coisas do budismo para controlar um dos meus vícios mentais: a raiva. Não parece, mas eu sou um vulcão, quase à beira da erupção. Mas como convém aos loucos, quase ninguém percebe. Por isso que sou vidrado nessa palavra tão significativa da língua portuguesa: quase.

:-)

sábado, 31 de julho de 2010

Amor de mãe é amor de cuidado.


A morte é o fluxo da vida e sabemos disso, é a lei da natureza... Mas como dói uma dor estranha essa da partida e de saber que nunca mais veremos uma pessoa amada. Laços de raiz, vincos de eterno amor e preocupação, porque a gente ama e se preocupa quando nossos pais envelhecem. E parece que foi ontem!

Aquele vigor no corpo, a voz firme, a mão forte do castigo, o dedo rígido dizendo não, não, não. De quantos nãos precisamos para entender que a vida não é do jeito que queremos, a vida é só o que fazemos e plantamos e não o que esperamos dela?

Quantos abraços e olhares silenciosos de nossos pais disseram: "Toma cuidado, meu filho, toma cuidado".

E quantas vezes rimos de tanto zelo? Quantas vezes pensamos em dizer: "Toma cuidado minha mãe, toma cuidado" e não dissemos? E quantas vezes choramos pelo tanto de zelo que temos e mesmo assim a gente sempre acha pouco? Amor de filho pra mãe é sempre amor em débito. Nunca chegamos perto do amor de mãe. Mas tentamos! E nessas tentativas é que nos confortamos.

Vai, não foram tantas noites assim que ficamos acordados por ela... E, no entanto, quantas noites mesmo ela dormiu sem a lembrança do filho ou sem dizer "toma cuidado, meu filho, toma cuidado". Algumas bem poucas, talvez...

Então ela dormiu, mas ainda bem que antes ela viu você, e talvez em pensamento tenha dito pela última vez pra você tomar cuidado. Amor de mãe é amor de cuidado.

Escrevi esse texto a um amigo que havia perdido a mãe. Mas é também uma homenagem a todas as mães, inclusive a minha mãe que como na foto ainda está presente me dizendo de longe ao pé do ouvido toda noite antes de dormir: "toma cuidado, meu filho, toma cuidado".

quarta-feira, 28 de julho de 2010


"Se queres ver-me novamente, procura-me sob teus sapatos.

Dificilmente saberás quem sou ou o que significo;

Não obstante serei para ti boa saúde

E filtrarei e comporei teu sangue.

E se não conseguires encontrar-me, não desanimes;

O que não está numa parte está noutra;

Nalgum lugar estarei à tua espera."

(Whitman)

terça-feira, 27 de julho de 2010

Sonya Prazeres


Tem gente que nasce com uma estrela na testa, tem gente que nasce com uma sorte danada no bolso, tem gente que sabe investir em ações, tem gente que cumpre rigidamente horário e regras, tem gente que sonha em largar tudo e dar umas voltas na pracinha arrastando um lençol branco com uma garrafa de cachaça na mão, tem gente de todo jeito.

Tem gente que não chora com comercial de televisão, mas se acaba em lágrimas vendo Cinema Paradiso, tem gente que tem um Totó na cabeça, um carteiro e um poeta debaixo do braço, e acredita no amor Florentino Ariza.

Tem gente que sonha em tomar uma caipirinha à beira mar e mora longe, tem gente que mora quase vizinho do mar e esquece de ir lá conferir a belezura dos verdes mares bravios. E ainda vem aqui escrever que tem vontades.

Mas tem também gente que parece que no berço tropeçou na chupeta e muito cedo caiu no liquidificador da vida e não tem tempo de se lamentar, nem de cumprir regras, nem de investir na bolsa, nem de lustrar a estrela da sorte, nem de sentir saudade do mar. Tem gente que tem o mar em si (parodiando o Léo Nogueira que tem o mar em mim).

Tem gente que nem precisa molhar o pé na beira do rio para saber de onde ele vem, de que dor, de que distância, de que terra, de que mar... (grande Nelson Motta!).

Tem gente que nem precisa do oceano para navegar, para mergulhar fundo e colher os submersos. Tem gente que colhe os submersos com uma palavra, ou um jeito de compor aquela canção que é e vai para sempre ser a canção recolhedora de submersos.

Tem gente que nem precisa das ondas, nem dos ventos, nem dos barcos, porque tem dentro da alma uma maré minguante, outra crescente, outra nova, outra cheia... Cheia de luz, raios e tempestades.

Tem gente que é sol, é lua, é da vida e da morte. Ora amiga, ora desarvoradamente inimiga, na inimizade leal dos desentendimentos e desenganos que estão todos prestes a cair.

Tem gente que nasceu com a Primeira Estrela. Tem gente que tem um encontro marcado comigo em Oxford Street.

(Para Sonya Prazeres, uma das mais incríveis compositoras desse país, autora de várias canções de sucesso na voz de Ney Matogrosso, Luhli, Lucina, Zélia Duncan e outros).

domingo, 25 de julho de 2010

Tu

Quase não tenho fome
longe de ti
é outro tipo de coisa
mas não é fome
nem sede
nem ansiedade
é precisão mesmo.

Tu, o alimento
tu, a água pura
tu, o benfazejo
tu, o chá de erva
tu, meu sexo em riste
tu, meu corpo satisfeito.

Veleiro


Eu nunca me encantei com o palhaço, no entanto, sempre fui tomado de afeição e carinho pelo artista que fazia o personagem do palhaço. Enquanto o malabarista me impressionava, a trapezista me dava calafrios, o palhaço me emocionava.

Não pela caricatura, não pela roupa extravagante, não pela pintura no rosto, não pelos tombos... Mas pelo olhar. Porque eu olhava profundamente no seu olho toda vez que chegava perto. E lá dentro, por trás da máscara de tinta, por trás da careta, eu via um artista de verdade.

Um artista que para fazer a sua arte precisava ter muito mais que habilidades e treinos (como era o caso do malabarista e da trapezista), precisava ter alma de artista, precisava mergulhar na vivência humana, buscar a infância perdida daqueles olhares cúmplices da platéia.

Para mim o palhaço era o verdadeiro mágico, seus tombos falsos, seus risos de ocasião, a gargalhada da platéia... Tudo aquilo fazia parte daquele menino que eu via lá dentro dos seus olhos e era esse menino que me hipnotizava, era com esse menino residente nos seus olhos que eu conversava.

Muitas vezes em silêncio, calado, que é meu jeito de conversar com as pessoas que me emocionam. Então, para mim tanto importava como ele estava vestido ou como seu rosto estava pintado. Eu queria ver aquele menino escondido nos olhos do palhaço. E rir dele e rir com ele.

Veleiro

sábado, 24 de julho de 2010

Saudade


Tenho um querer bem grande aos distantes, amor que nasce da impossibilidade de ter algumas pessoas por perto. Amor que nasce dessa dificuldade. Amor que se mistura às palavras que atropelamos no meio do caminho de um e-mail apressado e não percebemos o estrago. Amor que nasce desse estrago, dessa cicatriz.

Se fosse ao vivo a gente bem ouviria o coração dizer: vai devagar com o andor, lê as letras miúdas estampadas no meu peito que diz "cuidado é frágil".

Mas assim de longe, na distância que separa os setembros, a gente precisa lembrar que o silêncio distante é diferente do silêncio ao alcance da mão. O silêncio distante é um abismo. E a gente sai por aí tocando a vida, feito fome que nasce quando a boca está perto da comida. E até desiste de olhar o abismo com medo de ser tragado por ele.

Para lidar com o silêncio distante só escrevendo que é o meu modo estranho de aproximar a boca ao pé do ouvido. Para lidar com o silêncio distante, quando a carta não chega ou volta sem aviso de recebimento, a gente se aproxima dos que estão por perto e busca o aconchego em quem sem faz abrigo. E busca segurança em quem abre a porta e oferece café. E fica feliz, mas sente saudade.

Eu sofro de saudade crônica. De quem eu quero bem, de quem me faz escrever horas a fio, de quem parece entender o caminho incerto e vulnerável da poesia. Eu tenho saudade de quem me apresenta boas canções, de quem me indica um bom livro, de quem me escreve contando algo banal do seu cotidiano e consegue modificar o meu dia.

Ás vezes uma palavra basta para acender uma luz aqui. Uma palavra que nunca mais ninguém falou. Uma só palavra...

Eu tenho saudade de quem canta com o sotaque luso umas coisas brasileiríssimas e tem uma flor lilás no cabelo e um sorriso encantador.

Eu tenho saudade de quem adora receber as pessoas na sua cidade e arma algum encontro só pra celebrar a visita, fazendo o visitante se sentir querido ou mais querido por um dia.

Eu tenho saudade de quem não para nunca de trabalhar e não tem tempo para quase nada, a não ser para ligar no meio de uma viagem a trabalho só para te desejar feliz aniversário.

Eu tenho saudade de muita gente, e uma saudade especial de quem vai buscar a gente no aeroporto e senta no piano do restaurante do aeroporto para tocar e cantar canções. Só pela surpresa, só para fazer você se sentir especial e bem vindo na cidade.

Eu tenho saudade de quem abre a sua casa e faz uma roda de poesia e música e escreve um livro de poesia que nunca mais saiu da minha cabeça e que faço questão de colocá-lo num lugar de destaque na minha estante. Ali dentro tem uns versos que me pegam na alma, e eu sei exatamente a causa, o motivo e a circunstância...

Eu tenho saudade de quem descobre sua sobremesa preferida e quando você chega na cidade dessa pessoa, ela leva a sobremesa num isopor até o lugar onde você está. No meio de um restaurante, no meio de um monte de gente. E daí? Não é pra ninguém entender, é pra sentir. E nunca mais esquecer.

Eu tenho saudade de encontrar pessoalmente um amigo muito amigo e ficar pensando: será que vai ser muito estranho se eu me levantar agora e der um abraço? Só por abraçar mesmo, de agradecimento pelo mundo de cartas, discussões e compreensões. Discutir com pessoas inteligentes é sempre enriquecedor. Ser compreendido por elas é ainda melhor.

Enfim, eu tenho saudade, por isso escrevo. E muito, e muito.

Veleiro

Um dia especial


Um dia recebi um poema que me denunciava. Era meu retrato exposto em forma de versos. Era um retrato visto por olhos bons. Mas sendo o autor quem era, logo percebi que o poema também era letra de canção e com melodia de Alexandre Cueva e Affonso Moraes. O poema na verdade era uma canção.

Alguns meses depois estive em São Paulo, e num bar lotado, os compositores foram ao palco cantar essa canção. Impossível descrever esse momento. Fiquei imóvel, mudo, numa emoção absolutamente inédita para mim.


Veleiro Perdido
Léo Nogueira
 
Sou um veleiro estranho
Roubo do mar seu tamanho
Pra caber na imensidão
E, quando me sinto inteiro,
Sou agulha num palheiro
No celeiro da criação
 
Sou um veleiro perdido
Que só encontra sentido
Quando perde a direção
Não creio na fé que sinto
A fé é um marujo faminto
De uma outra embarcação
 
Eu sou somente um veleiro
Cruel, porque verdadeiro
E mais fiel que um cão
Fiel a um dono tirano
Meu amigo e oceano
A quem chamo coração
 
Sou um veleiro estranho
Às vezes, no mar me entranho
Pra que a solidão me banhe
E, quando me sinto parco,
Lembro que sou só um barco
No colo da nave-mãe



domingo, 18 de abril de 2010

Pensamento do dia.

Saiu pra passear perdido e voltou encontrado. Deixou o sorriso triste na primeira esquina, a angústia no banco da praça. Ser feliz dói?

Veleiro