sábado, 31 de julho de 2010

Amor de mãe é amor de cuidado.


A morte é o fluxo da vida e sabemos disso, é a lei da natureza... Mas como dói uma dor estranha essa da partida e de saber que nunca mais veremos uma pessoa amada. Laços de raiz, vincos de eterno amor e preocupação, porque a gente ama e se preocupa quando nossos pais envelhecem. E parece que foi ontem!

Aquele vigor no corpo, a voz firme, a mão forte do castigo, o dedo rígido dizendo não, não, não. De quantos nãos precisamos para entender que a vida não é do jeito que queremos, a vida é só o que fazemos e plantamos e não o que esperamos dela?

Quantos abraços e olhares silenciosos de nossos pais disseram: "Toma cuidado, meu filho, toma cuidado".

E quantas vezes rimos de tanto zelo? Quantas vezes pensamos em dizer: "Toma cuidado minha mãe, toma cuidado" e não dissemos? E quantas vezes choramos pelo tanto de zelo que temos e mesmo assim a gente sempre acha pouco? Amor de filho pra mãe é sempre amor em débito. Nunca chegamos perto do amor de mãe. Mas tentamos! E nessas tentativas é que nos confortamos.

Vai, não foram tantas noites assim que ficamos acordados por ela... E, no entanto, quantas noites mesmo ela dormiu sem a lembrança do filho ou sem dizer "toma cuidado, meu filho, toma cuidado". Algumas bem poucas, talvez...

Então ela dormiu, mas ainda bem que antes ela viu você, e talvez em pensamento tenha dito pela última vez pra você tomar cuidado. Amor de mãe é amor de cuidado.

Escrevi esse texto a um amigo que havia perdido a mãe. Mas é também uma homenagem a todas as mães, inclusive a minha mãe que como na foto ainda está presente me dizendo de longe ao pé do ouvido toda noite antes de dormir: "toma cuidado, meu filho, toma cuidado".

quarta-feira, 28 de julho de 2010


"Se queres ver-me novamente, procura-me sob teus sapatos.

Dificilmente saberás quem sou ou o que significo;

Não obstante serei para ti boa saúde

E filtrarei e comporei teu sangue.

E se não conseguires encontrar-me, não desanimes;

O que não está numa parte está noutra;

Nalgum lugar estarei à tua espera."

(Whitman)

terça-feira, 27 de julho de 2010

Sonya Prazeres


Tem gente que nasce com uma estrela na testa, tem gente que nasce com uma sorte danada no bolso, tem gente que sabe investir em ações, tem gente que cumpre rigidamente horário e regras, tem gente que sonha em largar tudo e dar umas voltas na pracinha arrastando um lençol branco com uma garrafa de cachaça na mão, tem gente de todo jeito.

Tem gente que não chora com comercial de televisão, mas se acaba em lágrimas vendo Cinema Paradiso, tem gente que tem um Totó na cabeça, um carteiro e um poeta debaixo do braço, e acredita no amor Florentino Ariza.

Tem gente que sonha em tomar uma caipirinha à beira mar e mora longe, tem gente que mora quase vizinho do mar e esquece de ir lá conferir a belezura dos verdes mares bravios. E ainda vem aqui escrever que tem vontades.

Mas tem também gente que parece que no berço tropeçou na chupeta e muito cedo caiu no liquidificador da vida e não tem tempo de se lamentar, nem de cumprir regras, nem de investir na bolsa, nem de lustrar a estrela da sorte, nem de sentir saudade do mar. Tem gente que tem o mar em si (parodiando o Léo Nogueira que tem o mar em mim).

Tem gente que nem precisa molhar o pé na beira do rio para saber de onde ele vem, de que dor, de que distância, de que terra, de que mar... (grande Nelson Motta!).

Tem gente que nem precisa do oceano para navegar, para mergulhar fundo e colher os submersos. Tem gente que colhe os submersos com uma palavra, ou um jeito de compor aquela canção que é e vai para sempre ser a canção recolhedora de submersos.

Tem gente que nem precisa das ondas, nem dos ventos, nem dos barcos, porque tem dentro da alma uma maré minguante, outra crescente, outra nova, outra cheia... Cheia de luz, raios e tempestades.

Tem gente que é sol, é lua, é da vida e da morte. Ora amiga, ora desarvoradamente inimiga, na inimizade leal dos desentendimentos e desenganos que estão todos prestes a cair.

Tem gente que nasceu com a Primeira Estrela. Tem gente que tem um encontro marcado comigo em Oxford Street.

(Para Sonya Prazeres, uma das mais incríveis compositoras desse país, autora de várias canções de sucesso na voz de Ney Matogrosso, Luhli, Lucina, Zélia Duncan e outros).

domingo, 25 de julho de 2010

Tu

Quase não tenho fome
longe de ti
é outro tipo de coisa
mas não é fome
nem sede
nem ansiedade
é precisão mesmo.

Tu, o alimento
tu, a água pura
tu, o benfazejo
tu, o chá de erva
tu, meu sexo em riste
tu, meu corpo satisfeito.

Veleiro


Eu nunca me encantei com o palhaço, no entanto, sempre fui tomado de afeição e carinho pelo artista que fazia o personagem do palhaço. Enquanto o malabarista me impressionava, a trapezista me dava calafrios, o palhaço me emocionava.

Não pela caricatura, não pela roupa extravagante, não pela pintura no rosto, não pelos tombos... Mas pelo olhar. Porque eu olhava profundamente no seu olho toda vez que chegava perto. E lá dentro, por trás da máscara de tinta, por trás da careta, eu via um artista de verdade.

Um artista que para fazer a sua arte precisava ter muito mais que habilidades e treinos (como era o caso do malabarista e da trapezista), precisava ter alma de artista, precisava mergulhar na vivência humana, buscar a infância perdida daqueles olhares cúmplices da platéia.

Para mim o palhaço era o verdadeiro mágico, seus tombos falsos, seus risos de ocasião, a gargalhada da platéia... Tudo aquilo fazia parte daquele menino que eu via lá dentro dos seus olhos e era esse menino que me hipnotizava, era com esse menino residente nos seus olhos que eu conversava.

Muitas vezes em silêncio, calado, que é meu jeito de conversar com as pessoas que me emocionam. Então, para mim tanto importava como ele estava vestido ou como seu rosto estava pintado. Eu queria ver aquele menino escondido nos olhos do palhaço. E rir dele e rir com ele.

Veleiro

sábado, 24 de julho de 2010

Saudade


Tenho um querer bem grande aos distantes, amor que nasce da impossibilidade de ter algumas pessoas por perto. Amor que nasce dessa dificuldade. Amor que se mistura às palavras que atropelamos no meio do caminho de um e-mail apressado e não percebemos o estrago. Amor que nasce desse estrago, dessa cicatriz.

Se fosse ao vivo a gente bem ouviria o coração dizer: vai devagar com o andor, lê as letras miúdas estampadas no meu peito que diz "cuidado é frágil".

Mas assim de longe, na distância que separa os setembros, a gente precisa lembrar que o silêncio distante é diferente do silêncio ao alcance da mão. O silêncio distante é um abismo. E a gente sai por aí tocando a vida, feito fome que nasce quando a boca está perto da comida. E até desiste de olhar o abismo com medo de ser tragado por ele.

Para lidar com o silêncio distante só escrevendo que é o meu modo estranho de aproximar a boca ao pé do ouvido. Para lidar com o silêncio distante, quando a carta não chega ou volta sem aviso de recebimento, a gente se aproxima dos que estão por perto e busca o aconchego em quem sem faz abrigo. E busca segurança em quem abre a porta e oferece café. E fica feliz, mas sente saudade.

Eu sofro de saudade crônica. De quem eu quero bem, de quem me faz escrever horas a fio, de quem parece entender o caminho incerto e vulnerável da poesia. Eu tenho saudade de quem me apresenta boas canções, de quem me indica um bom livro, de quem me escreve contando algo banal do seu cotidiano e consegue modificar o meu dia.

Ás vezes uma palavra basta para acender uma luz aqui. Uma palavra que nunca mais ninguém falou. Uma só palavra...

Eu tenho saudade de quem canta com o sotaque luso umas coisas brasileiríssimas e tem uma flor lilás no cabelo e um sorriso encantador.

Eu tenho saudade de quem adora receber as pessoas na sua cidade e arma algum encontro só pra celebrar a visita, fazendo o visitante se sentir querido ou mais querido por um dia.

Eu tenho saudade de quem não para nunca de trabalhar e não tem tempo para quase nada, a não ser para ligar no meio de uma viagem a trabalho só para te desejar feliz aniversário.

Eu tenho saudade de muita gente, e uma saudade especial de quem vai buscar a gente no aeroporto e senta no piano do restaurante do aeroporto para tocar e cantar canções. Só pela surpresa, só para fazer você se sentir especial e bem vindo na cidade.

Eu tenho saudade de quem abre a sua casa e faz uma roda de poesia e música e escreve um livro de poesia que nunca mais saiu da minha cabeça e que faço questão de colocá-lo num lugar de destaque na minha estante. Ali dentro tem uns versos que me pegam na alma, e eu sei exatamente a causa, o motivo e a circunstância...

Eu tenho saudade de quem descobre sua sobremesa preferida e quando você chega na cidade dessa pessoa, ela leva a sobremesa num isopor até o lugar onde você está. No meio de um restaurante, no meio de um monte de gente. E daí? Não é pra ninguém entender, é pra sentir. E nunca mais esquecer.

Eu tenho saudade de encontrar pessoalmente um amigo muito amigo e ficar pensando: será que vai ser muito estranho se eu me levantar agora e der um abraço? Só por abraçar mesmo, de agradecimento pelo mundo de cartas, discussões e compreensões. Discutir com pessoas inteligentes é sempre enriquecedor. Ser compreendido por elas é ainda melhor.

Enfim, eu tenho saudade, por isso escrevo. E muito, e muito.

Veleiro

Um dia especial


Um dia recebi um poema que me denunciava. Era meu retrato exposto em forma de versos. Era um retrato visto por olhos bons. Mas sendo o autor quem era, logo percebi que o poema também era letra de canção e com melodia de Alexandre Cueva e Affonso Moraes. O poema na verdade era uma canção.

Alguns meses depois estive em São Paulo, e num bar lotado, os compositores foram ao palco cantar essa canção. Impossível descrever esse momento. Fiquei imóvel, mudo, numa emoção absolutamente inédita para mim.


Veleiro Perdido
Léo Nogueira
 
Sou um veleiro estranho
Roubo do mar seu tamanho
Pra caber na imensidão
E, quando me sinto inteiro,
Sou agulha num palheiro
No celeiro da criação
 
Sou um veleiro perdido
Que só encontra sentido
Quando perde a direção
Não creio na fé que sinto
A fé é um marujo faminto
De uma outra embarcação
 
Eu sou somente um veleiro
Cruel, porque verdadeiro
E mais fiel que um cão
Fiel a um dono tirano
Meu amigo e oceano
A quem chamo coração
 
Sou um veleiro estranho
Às vezes, no mar me entranho
Pra que a solidão me banhe
E, quando me sinto parco,
Lembro que sou só um barco
No colo da nave-mãe