sábado, 24 de julho de 2010

Saudade


Tenho um querer bem grande aos distantes, amor que nasce da impossibilidade de ter algumas pessoas por perto. Amor que nasce dessa dificuldade. Amor que se mistura às palavras que atropelamos no meio do caminho de um e-mail apressado e não percebemos o estrago. Amor que nasce desse estrago, dessa cicatriz.

Se fosse ao vivo a gente bem ouviria o coração dizer: vai devagar com o andor, lê as letras miúdas estampadas no meu peito que diz "cuidado é frágil".

Mas assim de longe, na distância que separa os setembros, a gente precisa lembrar que o silêncio distante é diferente do silêncio ao alcance da mão. O silêncio distante é um abismo. E a gente sai por aí tocando a vida, feito fome que nasce quando a boca está perto da comida. E até desiste de olhar o abismo com medo de ser tragado por ele.

Para lidar com o silêncio distante só escrevendo que é o meu modo estranho de aproximar a boca ao pé do ouvido. Para lidar com o silêncio distante, quando a carta não chega ou volta sem aviso de recebimento, a gente se aproxima dos que estão por perto e busca o aconchego em quem sem faz abrigo. E busca segurança em quem abre a porta e oferece café. E fica feliz, mas sente saudade.

Eu sofro de saudade crônica. De quem eu quero bem, de quem me faz escrever horas a fio, de quem parece entender o caminho incerto e vulnerável da poesia. Eu tenho saudade de quem me apresenta boas canções, de quem me indica um bom livro, de quem me escreve contando algo banal do seu cotidiano e consegue modificar o meu dia.

Ás vezes uma palavra basta para acender uma luz aqui. Uma palavra que nunca mais ninguém falou. Uma só palavra...

Eu tenho saudade de quem canta com o sotaque luso umas coisas brasileiríssimas e tem uma flor lilás no cabelo e um sorriso encantador.

Eu tenho saudade de quem adora receber as pessoas na sua cidade e arma algum encontro só pra celebrar a visita, fazendo o visitante se sentir querido ou mais querido por um dia.

Eu tenho saudade de quem não para nunca de trabalhar e não tem tempo para quase nada, a não ser para ligar no meio de uma viagem a trabalho só para te desejar feliz aniversário.

Eu tenho saudade de muita gente, e uma saudade especial de quem vai buscar a gente no aeroporto e senta no piano do restaurante do aeroporto para tocar e cantar canções. Só pela surpresa, só para fazer você se sentir especial e bem vindo na cidade.

Eu tenho saudade de quem abre a sua casa e faz uma roda de poesia e música e escreve um livro de poesia que nunca mais saiu da minha cabeça e que faço questão de colocá-lo num lugar de destaque na minha estante. Ali dentro tem uns versos que me pegam na alma, e eu sei exatamente a causa, o motivo e a circunstância...

Eu tenho saudade de quem descobre sua sobremesa preferida e quando você chega na cidade dessa pessoa, ela leva a sobremesa num isopor até o lugar onde você está. No meio de um restaurante, no meio de um monte de gente. E daí? Não é pra ninguém entender, é pra sentir. E nunca mais esquecer.

Eu tenho saudade de encontrar pessoalmente um amigo muito amigo e ficar pensando: será que vai ser muito estranho se eu me levantar agora e der um abraço? Só por abraçar mesmo, de agradecimento pelo mundo de cartas, discussões e compreensões. Discutir com pessoas inteligentes é sempre enriquecedor. Ser compreendido por elas é ainda melhor.

Enfim, eu tenho saudade, por isso escrevo. E muito, e muito.

Veleiro

Um dia especial


Um dia recebi um poema que me denunciava. Era meu retrato exposto em forma de versos. Era um retrato visto por olhos bons. Mas sendo o autor quem era, logo percebi que o poema também era letra de canção e com melodia de Alexandre Cueva e Affonso Moraes. O poema na verdade era uma canção.

Alguns meses depois estive em São Paulo, e num bar lotado, os compositores foram ao palco cantar essa canção. Impossível descrever esse momento. Fiquei imóvel, mudo, numa emoção absolutamente inédita para mim.


Veleiro Perdido
Léo Nogueira
 
Sou um veleiro estranho
Roubo do mar seu tamanho
Pra caber na imensidão
E, quando me sinto inteiro,
Sou agulha num palheiro
No celeiro da criação
 
Sou um veleiro perdido
Que só encontra sentido
Quando perde a direção
Não creio na fé que sinto
A fé é um marujo faminto
De uma outra embarcação
 
Eu sou somente um veleiro
Cruel, porque verdadeiro
E mais fiel que um cão
Fiel a um dono tirano
Meu amigo e oceano
A quem chamo coração
 
Sou um veleiro estranho
Às vezes, no mar me entranho
Pra que a solidão me banhe
E, quando me sinto parco,
Lembro que sou só um barco
No colo da nave-mãe