quinta-feira, 18 de dezembro de 2008

A arte de voltar - show do Marcos Sacramento


Depois do show cancelado, Marcos Sacramento volta à Fortaleza e faz um estupendo show. Sim, não dá pra dizer que foi um show comum com início, meio e fim. Foi um show completo, pontuado pelo medo e a emoção. Como seria a reação do público? Como seria a primeira canção e a primeira vez que ele encararia talvez o mesmo público de antes? E se o som resolvesse de novo pifar?

Creio que tudo isso passou pela cabeça do cantor porque no burburinho da platéia havia essa interrogação: e se...? Mas o que se sentia, entre os convidados para esse retorno, não era a dúvida do dissabor, era a certeza de que dessa vez tudo seria diferente. Mesmo que o teatro tombasse e a iluminação sumisse e o som desaparecesse. Tudo seria diferente. E foi.

Eu falei teatro? Sim, dessa vez o show foi no teatro do Dragão do Mar e não no anfiteatro, espaço aberto sujeito às intempéries da natureza. Com o espaço fechado, ar condicionado e o jogo de luzes contando a história do show, tudo ganhou uma nova dimensão. Uma crônica contada em versos, música e cantoria. Um enredo conduzido por um narrador seguro e consciente de seu papel de comandante. De seu rosto percebia-se aos poucos a máscara da preocupação cair, e o semblante foi ficando, ao passar de cada canção, mais sereno. Em um determinado momento disse: "alguns aqui sabem como esse show é importante para mim". E era sim. E ele levou a sério essa coisa de retornar ao lugar de antes e reconstruir o que ficou pra trás. Poderia ter seguido adiante, tantos não fazem assim? Mas não.

Ele quis que fosse diferente. Que aquele mesmo público que voltou para casa carregando no bolso o desolamento do último show voltasse agora com o corpo e a alma cheia de alguma coisa maior, que não se diz o nome, mas que se sente. E sentindo, até pode em palavras vulgares, dizer por aí: sabe, ontem no show do Marcos Sacramento, eu fui feliz.

Eu nem esperava, mas ele queria tanto que ela, a felicidade, voltasse com a gente, que ela, tinhosa como sempre foi, cedeu. E voltou. Voltou com cada um que ali esteve. Reconheci isso no rosto dos cúmplices na saída do teatro. Na saída, revi dois amigos que foram conferir o show depois do burburinho da última apresentação. Eles disseram: você viu? Como incrédulos ao que foi apresentado na narrativa das luzes, no ambiente no palco, na sonoridade dos músicos. Que violões! Que pandeiro! Que enredo!

E o narrador lá, cantando como sempre cantou, totalmente envolvido com a narrativa de seus personagens. Aqui e ali um agradecimento à platéia que às vezes esquecia de parar de bater palmas como aconteceu depois que ele cantou A Rosa (do Chico Buarque) ou Vela no breu ( do Paulinho da Viola e Sergio Natureza), talvez esta, a música mais aplaudida. Pela letra, pela canção, pela interpretação do Marcos Sacramento.

No fim, no bis, a apoteose da canção do Herivelto Martins dizendo "vestido de seda, capote de forro, civilizarei o morro".

Não, não é bem assim, não foi dizendo, deixa eu corrigir... in-ter-pre-tan- do. Um cantor-ator no palco. Um cantor que sabe a diferença entre cantar e interpretar. E faz os dois, quando quer e bem quer para delírio e surpresa da platéia. Ora junto, ora separado, o ator e o cantor se misturaram. Na medida certa, sem exageros ou caricaturas.

O que eu posso dizer para concluir esse relato sobre o show do Marcos Sacramento é que foi um show único. Sim, essa palavra define tudo. Sabe quando você ouve alguém cantar e sabe na hora quem é aquele artista? É assim, no estilo, no jeito, na escolha do repertório, na interpretação. Tudo ali é autêntico e único. E essa é sua maior virtude.


Veleiro

domingo, 23 de novembro de 2008

A 4 Vozes, Fred Martins e... Rubi


Não posso deixar de registrar o show de ontem das meninas do A 4 vozes no BNB - Fortaleza. Caramba, que coisa impressionante! Um espetáculo estético, musical, emocional. Quando a matriarca subiu ao palco e cantou com as filhas/neta foi algo assombroso de tão bonito. E a beleza das meninas, a vivacidade na interpretação de cada canção, tudo muito divino e maravilhoso, como diria o Caê.

Antes delas o Fred Martins fez mais uma apresentação. Outra bela apresentação do Fred que já tinha se apresentado no centro cultural do BNB na semana passada. Mas claro, o surpreendente da noite foi mais uma vez... o Rubi. Um espetáculo a apresentação desse rapaz. A força do canto, a força da voz, do corpo, essa coisa toda é algo que nos transporta para uma outra dimensão. Quando ele desceu do palco para cantar a capella foi muito envolvente, como se ele quisesse abraçar todos ali cantando: "se perder pra diante, atrás é jardim, se perder pra diante, atrás é jardim... o aprendizado do amor..."

Foi aplaudidíssimo. Recebeu da platéia em doses imensas tudo que nos ofereceu lá de cima do palco: muita energia boa, muita emoção, muita felicidade de estar ali dividindo com ele aquele momento. A impressão que ele passa cantando é que cada apresentação é única e última. Como se fosse pela última vez, como se estivesse se despedindo e se reconstruindo para uma próxima aproximação. Quem nunca tinha visto ficou em estado de choque. Como se precisasse de tempo, tempo, tempo para cuidar da boa semente que ele deixou plantada ali no coração de cada um dos presentes.

No final do show, um dedo de prosa, e a gentileza do artista se confundindo com o que há de mais humano: a generosidade, o abraço apertado a cada um que chegava e a certeza de que tudo pode estar no centro do seu coração.

Noite memorável. Uma amiga já indo embora disse: "estou com a impressão de que estou deixando algo." E estava. Estava deixando um pedaço da alma grudada no abraço forte e sincero do Rubi.

Veleiro

segunda-feira, 27 de outubro de 2008

Quando Clara Nunes morreu...




Quando Clara Nunes morreu todos nós morremos um pouco. Clara, Clarinha, Claridade. Clara Nunes iluminava aquela casa nos anos 70 e início dos anos 80 aqui em Fortaleza. Reinava absoluta. Minha mãe a ouvia com verdadeira devoção cantando Cartola, Dolores, Candeia, Nelson Cavaquinho, Antônio Maria, Elton Medeiros e tantos e tantos outros.

Clara enfeitava aquela casa com as cores mais inesperadas. Sombria, irradiante, fugidia, violeira, apaixonada, ensandecida, desarvorada, feliz, feliz, feliz. E só. A solidão de Clara cantando era coisa que me impressionava. Só no meio do salão. Só nas águas do mar. Só com seu realejo no jardim da solidão. Só com seu povo do morro, das gerais e da favela. Só no meio da feira gritando: “ê banana ouro, ê banana prata”. Só, mastigando palavra por palavra aquele forró do Sivuca que para mim é o mais bonito de todos: “moleque, sai daqui, me deixa trabalhar”.

No fundo somos todos sozinhos, minha mãe era só naquele momento em que ouvia Clara Nunes. Perdia-se em pensamentos com um sorriso no rosto ouvindo Clara desabafar cheia de esperanças: “por isso agora vou viver cantando/ porque chorando/ secou quase todo o meu pranto/ eu sei bem que mereço/ mas não esperava tanto...” Sim, ninguém esperava tanto. Eu mesmo que aprendi a esperar esperando não esperava tanta tristeza naquele dia 02 de abril de 1983.

A casa ficou em luto. De certa forma a morte de Clara revelou pela primeira vez o peso da morte na nossa família. Meu pai ficou circunspecto, monossilábico naquele sábado que era geralmente o seu dia de abrir sorrisos. Minha mãe nada dizia. Fechou-se em sua solidão e como quem não acreditava na imagem anunciada da televisão saiu da sala e foi pegar os lps. Separou cada um com muito cuidado, retirou-lhes de cima uma poeira imaginária e os lambeu vigorosamente com os olhos. Não disse uma palavra sequer. Sentada na cadeira de balanço embalou Clara como se fosse sua irmã. A irmã que nunca tivera.

Chorava mudamente e ninguém tinha coragem de interromper aquele instante, nem sequer para consolá-la. Mamãe não queria consolo, não queria a tristeza de nossos olhos cúmplices, não queria nenhuma compreensão que de pouco adiantaria. Ela queria Clara de volta. Era só isso que ela queria. Desde a internação até o dia de sua morte, mamãe só queria Clara de volta.

Ela ouviu ali mesmo, naquela cadeira de balanço, cada lp. Um a um. Ouvia tudo em silêncio, um silêncio tão doído que nunca mais me saiu da cabeça aquela imagem. Algumas vezes ela encostava a cabeça no espaldar da cadeira e soluçava, ouvindo Clara entoar: “quero recordar aquela velha casa/ quantas flores no meu jardim.../ quero recordar, não importam essas lágrimas/ às vezes faz bem chorar.” E tal como na canção, mamãe chorava. Por ela. Pelas recordações que Clara lhe enviava nas suas canções. Pela irmandade que havia entre aquelas mulheres órfãs que tiveram de enfrentar a vida muito cedo. Clara como operária na fábrica de tecidos, mamãe como secretária num colégio de padres.

A noite veio e de madrugada, já deitado, ouvi meu pai chamando minha mãe. Era a primeira vez que alguém lhe dirigia a palavra. Não ouvi sua resposta, mas vi papai passar sozinho para o quarto. Com a porta fechada ainda dava para ouvir o som da sala onde ficava a radiola. Pensei em ir lá, mas o que dizer? Não saberia dizer nada diante de seus olhos verdes cheios de lágrimas silenciosas. Apurei um pouco a audição na escuridão do quarto e ouvi Clara cantar: “Dei um aperto de saudade no meu tamborim/ molhei o pano da cuíca com as minhas lágrimas/ dei o meu tempo de espera para a marcação/ e cantei a minha vida na avenida sem empolgação/ Vai manter a tradição, vai meu bloco tristeza e pé no chão.”

Nesse momento me encolhi todo. Sentado que estava de um pulo voltei pra cama. Abrir aquela porta era quebrar o tempo de espera, o tempo de desacerto, o tempo de descompasso entre a despedida de Clara e a dor de mamãe. Tentei dormir, mas era inútil. Eu que sempre fui apaixonado por música ficava do lado de dentro do quarto esperando a próxima música. Eu não sabia, mas esperar a próxima música era da minha natureza. Até hoje ainda é. Tentava adivinhar qual seria a próxima canção ouvindo os primeiros acordes ou no silêncio do momento em que mamãe tirava um disco e colocava outro.

Desse modo, naquela noite de tantos significados, consegui identificar a música preferida de cada lp. Ao trocar o disco ela guiava a agulha para uma canção que nem sempre era a primeira do lado A. Muitas vezes era a quarta ou quinta do lado B. E depois ouvia repetidamente a mesma canção, várias e várias vezes.

No lp Claridade sei que “O sofrimento de quem ama” era uma das mais tocadas. Era a primeira que ela escolhia e dizia assim: “os meus olhos vertem lágrimas/ meu coração arde em chamas/ ai como é doloroso o sofrimento de quem ama/ a minha alma reclama/ sinto meu coração pelo ardor das chamas dilacerar/ por uma fingida mulher que não sabe/ que não sabe amar...” Depois ela ouvia Tudo na Vida é Ilusão e Juízo Final.

No lp Canto das três raças, Ai quem me dera, uma valsa linda do Vinícius: “ai quem me dera ouvir o nunca mais/ dizer que a vida vai ser sempre assim/ e finda a espera ouvir na primavera/ alguém chamar por mim...” Logo em seguida ela escolhia Lama, do Mauro Duarte. Depois surgia Nelson Cavaquinho e Guilherme de Brito com Tenha Paciência e, depois, Canto das três raças do Paulo Cesar Pinheiro e Mauro Duarte.

A noite passou veloz. Por baixo da porta eu sentia que o dia já estava amanhecendo. Vinha uma pontinha de claridade e o som da voz de Clara no lp mais festejado por mamãe que tinha curiosamente o nome mais bonito de toda a língua portuguesa: Esperança, de 1979.

Mamãe ouvia esse lp repetidamente, todas as canções. Todas mesmo. Suspeito que foi através dele que mamãe renasceu naquela noite e se banhou de manjericão, como dizia a primeira música do lp “Banho de Manjericão” do Paulo César Pinheiro e João Nogueira.

Lembro que abri a porta do quarto quando esse lp já estava tocando pela quarta ou quinta vez. A música que estava tocando era Obsessão (Mirabeau e Milton de Oliveira) uma música linda que dizia assim: “você roubou meu sossego/ você roubou minha paz/ com você vivo a sofrer/ sem você vou sofrer muito mais...” Depois vinha Linha do Mar do Paulinho da Viola e Apenas Um Adeus do Paulinho Diniz. Quando o disco chegou na música do Candeia e Jaime, chamada Minha Gente no Morro, eu não agüentei. Chorei do alto dos meus 10 anos de idade. E ainda hoje é uma música que me emociona profundamente: “ontem estive no morro e voltei chorando/ morro sem malandro que já tem senhor/ vejam só! / Disseram que compraram o morro/ estão derrubando barracos de zinco/ estão se acabando/ pra morar no morro tem que ser doutor...”

Na verdade, eu não sabia, meu pai não sabia, meus irmãos tampouco sabiam que mamãe havia se reinventado a partir do repertório de Clara. Clara cantava o que mamãe sentia ou pensava ou queria sentir ou não sentia ainda, mas gostava tanto que passava a sentir. E por isso, a morte de Clara representou uma pequena morte de mamãe. Nesse momento foi quando me dei conta que viver é morrer um pouquinho todo dia, é ir se deixando aos poucos nas pessoas, nas coisas, nos gestos, nas palavras.

Por dentro mamãe morreu naquele dia 02 de abril, e quando o dia estava amanhecendo, como sempre acontece, ela foi se ressuscitando. Velou a noite inteira o seu próprio corpo e amanheceu, por conta de Clara, mais viva que antes. Olhando de lado, me viu encostado no canto da porta chorando por conta daquela emoção que a música me trazia, por causa dela sentada ali naquela cadeira a noite toda, por conta de Clara ter ido embora tão cedo e de uma forma tão banal. Naquela noite eu fui cúmplice e a meu modo velei o corpo de Clara e o corpo de mamãe.

A família foi acordando aos poucos. Nessa hora ouvíamos bem alto Abrigo de Vagabundo do Adoniran Barbosa. Já não mais chorávamos. Ouvíamos cúmplices os versos: “minha maloca a mais linda que eu já vi/ hoje está legalizada ninguém pode demolir/ minha maloca a mais linda desse mundo/ ofereço aos vagabundos que não têm onde dormir...”

Hoje ainda ouvimos Clara, eu aqui na minha casa e ela lá na mesma casa de sempre. Dia desses soube que ela mandou consertar a radiola e ouviu todos os lps da Clara numa só tacada. Liguei pra confirmar e ela confirmou. Quando estamos juntos e toca uma música da Clara, ela me dá uma olhada com aqueles dois olhos verdes e parece que o tempo não passou e eu ainda sou aquele menino que se emociona ouvindo música.

Sergio-Veleiro

segunda-feira, 6 de outubro de 2008

ir ao cinema no Iguatemi... que dureza!


Algumas coisas eu não entendo, não entendo, não entendo e não entendo. E isso para um sujeito racional e sistemático é quase uma agressão. Por exemplo. Eu não entendo como o cinema do Iguatemi pode desrespeitar tanto o consumidor e ninguém dizer ou fazer absolutamente nada. Não entendo porque você tem que ficar 40 a 50 minutos em pé na fila do cinema Multiplex do iguatemi para comprar um mísero ingresso para assistir a um filme. É inaceitável nos dias de hoje você sair de casa para ir ao cinema e saber que vai ficar cerca de 50 minutos em pé numa fila como se estivesse pedindo um grande favor ao shopping, ao dono do cinema, a seja lá quem for.

Recentemente fiquei 50 minutos na fila (mais uma vez!) para comprar um ingresso no cinema do Iguatemi (Multiplex). Motivo? Só havia dois caixas funcionando, sendo que um era para dar prioridade a idosos, gestantes e etc. Ou seja, a fila imensa e só um atendente. É desesperador. Você olha para o relógio e vê que o filme está perto de começar e nada da fila andar. Aceita cartão de crédito e débito na bilheteria, então já viu, passa cartão, dá erro, passa de novo, imprime, assina, digita a senha... E a multidão na fila feito gado à espera de que mesmo? Ah, o filme...

Ir ao cinema hoje virou teste de paciência. Dessa última vez, além dos 50 minutos em pé na fila ainda aconteceu um fato novo. Fui para outra fila, a da pipoca (mais uma fila!). Ao ser atendido a moça informa: não tem coca cola, senhor, não tem refrigerante, está em falta. E mais não disse. Nessa hora você sente um idiota por ter saído de casa. Hoje não é meu dia, pensei. Mas insisti, desci, comprei refrigerante, subi, comprei pipoca e enfim... o filme.

Antes de entrar na história do filme, claro, duas moças chegam atrasadas e começam a conversar como se estivessem no puleiro de suas casas. Ai, ai... Penso que elas poderiam morrer engasgadas com as suas pipocas, seria tão bom... Mas se eu não matei as pessoas na fila, a moça da bilheteria e a moça que avisou: não tem coca-cola, senhor, não poderia matar essas duas. Não primeiro que as outras. É preciso respeitar a fila!

Troco de lugar. Respiro aliviado: ninguém sentado à frente. O filme (re)começa, o filme se arrasta, o filme termina. Sim, eu não devia ter ido ao cinema. Se não fosse a companhia agradável, sempre é bom estar bem acompanhado, eu juraria nunca mais voltar ao Multiplex do Iguatemi. Mas... quem resiste a um bom filme no cinema? Aquele cheirinho de pipoca e coca cola (zero cal, por favor) por perto? E comer ameindoim com chocolate entre um e outro gole de coca cola (zero cal, por favor). Hummm... tão bom, tão bom.

Como ir ao cinema é loteria e eu não tenho tido muita sorte nesse tipo de aposta, quem sabe se eu jogar na megasena a coisa não muda?

P.S. Qual filme eu vi? Tormenta de lágrimas, lágrimas das tormentas...algo assim. Richard Gere e Diane Lane. Lindos atores interpretando um texto horrível de tão clichê e repetido. Desrecomendo! Esse não vale nem em DVD.

P.S. Tentei comprar ingresso virtualmente. O cadastro é tão invasivo que recuei. Pediu CPF, RG, nome do pai, nome da mãe, endereço completo, telefone, número do cartão de crédito, dígitos de segurança, etc. Só faltou mesmo a senha do banco.

Veleiro

quarta-feira, 10 de setembro de 2008

E a paixão pelos livros é eterna...



Minha primeira paixão sempre foi literária. A música veio depois, muito depois. Primeiro veio o verso. Depois a prosa, o livro, os rascunhos, os pedaços de papel escondidos debaixo da cama, anotações de um diário imaginário. Adiantando no tempo vieram enfim as cartas. Correspondências trocadas com uma infinidade de pessoas que eu nunca cheguei a conhecer. Guardo até hoje essas correspondências juvenis, amizades que nasceram através da palavra. Palavras que me rodeavam e me descreviam enquanto eu tentava entender o mundo e as coisas do mundo.

Assim, o fascínio pelo livro, pela palavra escrita, sempre andou por perto, e até hoje ainda viajo para vasculhar os sebos das cidades e me divirto sozinho mexendo e comprando livros antigos, velhinhos, mas cheios de histórias de seus antigos possuidores. Dedicatórias incríveis, histórias contadas pelos donos de sebos, curiosidades de outros amantes do livro.

Escrevo tudo isso para dizer que guardo algumas recordações marcantes de livros que adquiri por essa vida. E uma delas tem tudo a ver com a M Música. Foi através da M Música, grupo virtual e real de compositores e apaixonados por música, que eu descobri o livro de poesias da Etel Frota chamado Artigo Oitavo. Já falei inúmeras vezes sobre esse livro e já escrevi não sei quantos poemas, sempre tomado pela emoção que me assombra toda vez que o releio.

Escrevi uns versos depois da primeira leitura. Lia sem pressa, mas tão vorazmente que a velocidade da fome me atropelava. Depois juntei os cacos do que sobrou e me recompus lendo novamente sem pressa e um pouco mais saciado. A fome ainda existe e peço a Deus que ela nunca se afaste, mas hoje é diferente, não só hoje, a cada dia eu sei que é uma fome diferente.

Quando Etel fez aniversário na Ilha do Mel mandei esses versos pelo Iso Fischer para a aniversariante. Ele leu e imagino (gosto às vezes de imaginar) que causou uma certa emoção no momento da leitura. Uma fisgada que seja. Uma pontada ao perceber como a palavra sempre cumpre seu destino de acender alguém distante e desconhecido. Gosto de pensar que alguém ao ouvir ou ler esses versos percebeu também o tamanho do enlace entre o que aqui reside e o que mora lá naquele livro chamado Artigo Oitavo.

Não tenho muito contato com a Etel. Só um ou outro email aqui e acolá. Estivemos juntos em Curitiba quando ela organizou em sua casa um sarau poético. Iso entrou com tudo cantando e tocando ao piano nossas parcerias musicais. Etel conversou, mostrou parcerias, leu um poema do Silvio (um radialista e poeta de Curitiba). Foi uma noite memorável com o Juarez, Enéas, Vicente e outros.

Tempos depois, eu e Etel, tentamos uma parceria em verso, não deu certo. Mandei pra ela duas estrofes por email e ela concluiu. No final das contas, percebendo que não era o que eu esperava, ela me botou na parede. Depois de longos emails explicativos chegamos a uma conclusão: cada um faria um poema independente. Ela recolheu os versos dela e fez seu poema, sozinha. Virou um belo poema. O meu ficou inconcluso até hoje. Um dia termino...

Bom, depois disso algum tempo passou e voltei a reler o Artigo Oitavo e novos versos vieram, mas aqueles da primeira leitura ainda me rondavam. Sabia que eles não me deixariam nunca em paz se não fizesse algo por eles, se não transformasse aquele momento em algo que não fosse a prisão do papel.

Peguei os versos, contei num email imenso o que significou o livro da Etel e o conteúdo do livro (com alguns poemas transcritos) para o meu parceiro-irmão-amigo Eduardo Franco. Pedi que ele lesse o email e os versos com calma e cuidado.

Queria que esses versos virassem canção e só ele poderia entender exatamente o que eu sentia, afinal ele já me achou não sei quantas vezes em versos que faço pra ele, pensando nele, nas nossas conversas e no som que ele faz.

E tantas e tantas vezes ele soube traduzir em canção o que eu escrevia que não tive dúvida. Algum tempo depois o Eduardo me mandou um email dizendo que a canção estava pronta, depois de alguns ajustes com a gravação, chegamos ao resultado final.

Quem já leu o Artigo Oitavo vai entender melhor os versos, quem ainda não leu pode se deixar levar na canção e tentar imaginar o que tem ali naquele livro de tão especial.

Artigo VIII - Os Estatutos do Homem
Fica decretado que a maior dor sempre foi e será sempre
não poder dar amor a quem se ama
e saber que é a água que dá à planta o milagre da flor.
Thiago de Mello

Artigo Oitavo
(Dedicado a Etel Frota)


Com dor e alegria
De cada pedaço
Eu leio seu livro
Passo a passo

Fronteira de rio
Cipó em laço
Barco vazio
Peixe escasso

Eu sou esse rio
E é nele que eu passo
Estou por um fio
Feito de aço

Se é dor imprecisa
Coração embaça
Se beijo Luisa
Clara me abraça

Riso de picadeiro
Palhaço sem graça
Choro traiçoeiro
Circo e fumaça

Debaixo das lonas
Véu e argamassa
O mundo de Jonas
Hoje me enlaça

Tomo cortisona
E o peito ameaça
Asma que ronda
Tristeza que passa

Se é dor imprecisa
Coração embaça
Se beijo Luisa
Clara me abraça

Você me aprisiona
Raposa de caça
Loba materna
Poeta da raça

Mulher da caverna
Irmã da cachaça
Vinho de taberna
Conhaque de graça

Volto à caserna
E me alinhavo
Estou a perigo
No artigo oitavo

Se é dor imprecisa
Coração embaça
Se beijo Luisa
Clara me abraça


Veleiro

segunda-feira, 1 de setembro de 2008

sábado, 23 de agosto de 2008

Os livros e a... música!


Morar só é uma aventura. Todo dia você se pergunta quem é você e do que de fato você gosta. Essas perguntas não são conscientes, mas estão camufladas no dia a dia. Respondendo a segunda, descobri que a coisa que eu mais gosto no mundo é ouvir música, mas eu sempre fiz isso na casa dos meus pais, pensei. Ocorre que lá o pouco tempo que ficava em casa era dividido com a família, irmãos, mãe, pai, avó etc... Morando só eu me vi sozinho vasculhando o que tinha em casa para fazer (sou muito caseiro) aí descobri um mundo de cds que eu tinha e muitos eu só havia ouvido uma única vez... Coisa que a solidão faz também é ficar na internet desbravando o que nos fascina e foi assim que encontrei gente do país inteiro vidrado em música. Como uma coisa leva a outra, seis meses depois eu estava no Rio de Janeiro num bar lotado de amigos virtuais que viraram amigos reais e me acompanham até hoje. Gente do país inteiro unido pela boa música brasileira. Quando viajo pra qualquer lugar do país escolho um dia para rever esses amigos e trocar informações e coisas musicais. Hoje estou ouvindo os sambas do Paulo Vanzolini, coisa mais linda desse mundo, com a família Buarque de Holanda cantando em várias faixas dos cds. Mas a primeira paixão não foi musical... foi a dessa foto aí, mas isso é pra outro post.

Veleiro

sexta-feira, 15 de agosto de 2008



Uma tarde-noite maravilhosa com amigos maravilhosos aqui em casa. Muita música boa, café, amizade, chá, carinho, pães e muito companheirismo. Isso é só um pouco dessa turma. Esse post é em homenagem a mais nova integrante: Luciana.

Seja bem vinda, Luciana.

domingo, 10 de agosto de 2008

O chá



Como tudo na minha vida, primeiro eu namoro de longe, depois chego mais perto, depois de algum tempo antes mesmo de saborear... vou ler tudo que existe sobre o assunto. Foi assim também com minha nova mania. O chá. Existe chá pra tudo. Enfim, como diz a Syomara, agora eu virei um chausídico!

Veleiro

sexta-feira, 8 de agosto de 2008

Para Lulu dos sete véus...

De minha parte eu cansei de cerimônias e rituais de despedida. Cansei de me preparar para as datas certas, as horas exatas, para celebrar a ausência com flores brancas e lágrima na voz.

Não lembro muito bem como tudo aconteceu, só sei que fui ficando cada vez mais vazio. E o comboio que me levava também cada vez mais vazio, tão vazio o bichinho. No meu comboio sai mais gente do que entra! Fiquei assustado quando percebi isso. Um dia me desesperei. Não desce mais ninguém, gritei. E toca o comboio pra frente sem parar em nenhuma estação. Foi então, nesse instante, que descobri porque não entrava mais ninguém... Eu não parava, a vida não parava, tudo estava sempre em movimento.

O tempo passou, a vida correu, e certa vez o meu comboio diminuiu a velocidade, não sei direito se ele parou em alguma estação ou se só diminuiu a velocidade. A porta estava fechada, mas a janela aberta. Gosto de imaginar que nesse dia você entrou pela janela. E que teve muito trabalho para entrar! Tinha fivela no cabelo, lembro bem desse detalhe, e um sorriso azul nos lábios. Sentou na minha frente com seu jarrinho de flor lilás no colo e ficou me olhando, me olhando, mas não disse nada. Nada! Nem uma palavrinha sequer. E nem precisava.

Veleiro

quinta-feira, 31 de julho de 2008

De tudo fica sempre um resto...

Eu sempre quis que algo de bom ficasse quando o amor chegasse ao fim. E muitas vezes eu me recusei a deixar o amor ir embora porque não tinha me preparado antecipadamente para essa despedida, mesmo que em mim o amor já não existisse, mesmo que fora de mim o amor não me visse com olhos lassos (sem ironias, nem cansaços).
Não importava, antes do amor ir embora deveria haver um quase-algo preparado, uma despedida que anunciasse um ponto final e eu não me transformasse (como sempre me transformo) em eternas reticências. E ficava agarrado ao quase-amor que ainda restava por uma infantil necessidade de guardar algo que o representasse. Um retrato, uma carta, um cartão postal que denunciasse algum instante de alegria, afeto, amor. Algo de concreto devia ficar, um símbolo que seja, qualquer coisa. Eu e meus símbolos. Eu e minhas chaves que não abrem porta alguma. Eu e minha estranha necessidade de ter algo palpável para lembrar. Sou apegado a detalhes, sempre fui.

E muitas vezes deixei de perceber que o que deveria ficar não era um objeto, uma fotografia, ou uma chave, era algum sentimento, ainda que de difícil definição. Só com o tempo aprendi a deixar que algo ficasse entranhado em mim que fosse do amor que ia embora. Algo invisível, imaterial e incrivelmente palpável. Algo que o coração se prepara a vida toda pra receber, hospedar, acolher. Algo como a lembrança de uma lembrança (isso me lembra Manuel Bandeira... será do poema morte absoluta? talvez... "que céu pode satisfazer o teu sonho de céu?").
Hoje, esses pedaços, que são lembranças que me alimentam, temperam o amor presente e já não sinto saudade. Quer dizer, sinto, mas é uma saudade tranquila, morna. Saudade sem dor e sem vontade de reviver nada. A vida é hoje, meu tempo é agora.
P.S. Deixa eu fazer logo um esclarecimento: sou o maior ladrão literário do mundo, eu furto passagens literárias de livros que li e escrevo naturalmente sem perceber. Não é proposital, juro, é porque sempre tive facilidade para decorar. Na infância decorava muitos poemas e livros (passagens, textos) com medo que me mandassem jogar bola e eu não tivesse mais tempo para ler o livros que queria ler...

Veleiro

sexta-feira, 25 de julho de 2008

o amor é pura perda...

E ele acordou cedo. Levantou-se da cama, fez o café e viu pela janela da sala o dia amanhecendo. Um dia como outro qualquer se não fosse a noite anterior, um dia como tantos outros que se passaram naquela mesma janela e que não lhe causava qualquer sensação, se não fosse a lembrança da noite anterior que adormecia em suas lembranças.

À noite, antes de dormir, leu em um dos livros que lhe espreitava o sono uma síntese daqueles dias: " ... mas o amor não se dá, nem se possui, o amor é pura perda, desdenhoso de sua fortuna, desligado de si mesmo, desprendido de qualquer reino. E essa puríssima perda de amar é a única riqueza do amor, como uma luz sobre o mundo, como uma pobreza radiosa, como uma jóia de alegria na infinita solidão dos viventes."

quarta-feira, 23 de julho de 2008

A história de um abraço - para Vera Lima


Você sempre me recebeu com um abraço, sempre. De onde venho isso não é comum, e de início, devo confessar, achei estranho. Mas havia uma boa vontade ou um sentimento tão explícito de satisfação que era impossível não aceitar o seu abraço. Havia sempre uma alegria em você, uma euforia fraterna, um tipo de irmandade nos olhos que me comovia, e eu não sabia recusar o seu abraço. Era sempre como se eu estivesse abraçando alguém muito querido depois de muito tempo sem vê-lo. Isso no tempo em que se permitiam os abraços. Hoje, depois de adultos, já não fazemos mais isso. Quando muito no aniversário ou para desejar feliz ano novo.

Percebi então que o abraço, embora para você fosse tão simples e fácil, é bastante raro. Não só em minha família, que é uma família de poucos abraços, mas também nos meus relacionamentos anteriores pela vida. Abraça-se muito pouco. Depois que a gente vira adulto parece que alguns gestos passam a ser proibidos ou reprovados. Quando criança para qualquer pessoa os braços estavam abertos, prontos para um abraço. E nessa época, a gente nem se importava se o abraço era recíproco e nem sabia direito o que significava abraçar. Era um gesto natural, instintivo. Meu Deus, quanta coisa a gente perde quando cresce... Da ingenuidade ao abraço. Não sinto falta da ingenuidade perdida, nem dos sonhos que somente crianças sonham. Sinto saudade do abraço.

O apoio de mãos sobre as costas, a pressão dos braços enlaçados, o calor humano, a troca de sentimentos, quantas palavras cabem num único abraço? Talvez todas. Na infância, como o rol de palavras é restrito, o abraço serve como meio de comunicação. Para cada momento diferente existe um abraço: abraço de alegria, abraço sofrido, abraço sorridente, abraço angustiado, abraço de não mais largar, abraço para não cair, abraço pra deitar a cabeça no colo, abraço pra dormir, abraço rápido para não atrapalhar a brincadeira, abraço de boa noite, abraço pra se proteger do frio, abraço pra comemorar o gol. Havia abraço pra tudo.

Hoje não abraçamos mais ninguém. Nas poucas vezes é preciso um bom motivo. Geralmente, o abraço vem no dia do aniversário. E não é em todo aniversário. Às vezes, os cumprimentos se encerram num aperto de mão ou naquele falso abraço em que os corpos ficam distantes e as mãos batem nas costas do outro efusivamente. Esse definitivamente é o pior abraço. De todos os abraços, esse falso abraço é sempre o mais incômodo. Quando a mulher faz isso significa: tenho pena de você. Quando outro homem dá esse tipo de abraço significa: mantenha-se distante. Nos dois casos a sensação, após o abraço, é sempre de um vazio monumental. Prefiro o aperto de mão que mantém a distância com honestidade, desde que o olhar seja mantido, porque outro problema é o olhar. Não há coisa pior do que cumprimentar com a mão estendida e ao olhar para pessoa descobrir que ela está olhando para outro lado e não para você. É como se ela estivesse cumprimentando uma porta. É como me sinto nessa situação: uma maçaneta de porta.

Vamos ser sinceros, ninguém abraça sem data marcada. A não ser que se peça, aí também já não tem o mesmo valor. Você, entretanto, sempre agiu diferente. Sempre que me via sua expressão era de braços abertos, prontos para mais um abraço. Depois de um tempo, lá no terceiro ou quarto abraço, percebi que não era um gesto trabalhado. Era natural e instintivo, como passar a mão na cabeça quando a chuva molha. Receber seu abraço era como voltar à infância, com a vantagem de não ser mais tão ingênuo. Era como uma recompensa pelos sonhos que só sonhei quando era criança e que hoje não sonho mais.

Hoje, depois de tanto tempo de amizade, quando vejo você de braços abertos recebendo as pessoas com seu abraço cheio de afeto e compreensão, fico feliz pelo abraçado. Fico feliz porque sei o que seu abraço significa, porque sei o afago na alma que ele proporciona. E fico mais feliz ainda por saber que já já você vai me abraçar de novo, daquele seu jeito que só você sabe abraçar. Saiba que de tudo que aprendemos juntos (amizade não é sempre essa via de mão dupla de tantos aprendizados e afetos?) o seu abraço foi a melhor parte. Eu que tenho lá meus tantos silêncios entendo melhor o que as palavras não dizem, e pra que mesmo servem as palavras se o seu abraço já me diz tudo?

Um grande e demorado abraço desse teu veleirim-amigo,
Sergio

domingo, 20 de julho de 2008

O poema perdido

A primeira vez que perdi um poema foi como ter um pedaço extirpado do corpo sem anestesia, sem acalantos mornos ou vozes suaves dizendo "vai passar, vai passar". A primeira vez doeu e doeu tanto que pensei em nunca mais escrever um poema. Fiquei tão doído no corpo, na alma e na desesperança de saber que nunca mais veria novamente aquele poema que jurei para mim mesmo não escrever um outro poema.

Impossível recuperar o poema perdido, impossível tentar revivê-lo, reacendê-lo em outra chama, em outro pavio. Precisei de tempo para entender isso e por muitas noites tentei em vão ressuscitar o poema perdido. Velei seu corpo invisível na tela branca do computador tantas noites, tantas noites, que muitas vezes nem percebi o dia raiando do outro lado da janela. Por dentro de mim ainda era noite e eu me recusava a amanhecer enquanto meu poema não ressurgisse dentro de mim.

Foi tudo tão rápido que eu já nem lembro direito como tudo aconteceu: uma tecla errada, um dedo apressado e pluft o poema sumiu.

Cada poema é único e aquele que perdi pela primeira vez foi único dentro de mim e eu nunca mais o esqueci. O tempo passou e muitos poemas voltaram a se perder dentro de mim e fora de mim também, que é onde eu mais perco as coisas. Confesso que muitas vezes me perdi deles também, fugi feito rio violento em noite escura me escondendo na escura e violenta mágoa daquela primeira frustração. Fugi de medo. Eu tenho muitos medos, medo de tudo, tenho medo dos meus poemas, medo das minhas palavras que não dizem o que eu quero dizer, medo que elas voltem a desaparecer outra vez.

Tento não deixar o medo paralisar meus sentidos e por isso escrevo. Escrevo para me lembrar que um poema perdido, como tudo que se perde, já nasce para se perder, a gente é que não sabe disso antes.

Mas hoje não quero escrever um poema, não quero ressuscitar versos perdidos ou guardados nas imensas gavetas das minhas saudades. Hoje não quero brincar de poesia nem chorar pelo verso perdido (mais um!). Quero só ficar quieto no meu canto, em silêncio, em silêncio.
Veleiro

domingo, 13 de julho de 2008

É impressão minha ou os fortalezenses desaprenderam a dirigir na cidade? Direção preventiva? Aqui está difícil, ninguém dá nem sinal ao dobrar à direita ou à esquerda. Será que é pra não gastar a lanterna do carro?

Veleiro

no verso do verso do verso que morre...

Perdoe a pressa, a urgência, a indigência
dessas poucas palavras que nada dizem
e se perdem em explicações fajutas,
tão fajutas quanto o seu dono,
esse senhor escrevedor de horas.

Que amanhã o corpo não esteja cansado,
nem a alma exausta, nem as palavras dispersas,
e que ao acordar, juntando tudo, corpo, alma e palavra
eu possa lhe dizer mais que as horas estancadas
do relógio de pulso que já não uso.
E dizendo, que eu seja lúcido o suficiente
para não deixar o desvario do meu verso torto
repousar no seu colo silente, descalço, nu
imerso numa dor tão doída
que alguém poderia perguntar:
Morreu?

Mas se isso, porventura ou por descuido, acontecer
que você pegue o meu verso
e vele e chore e reze por ele,
por mim, por nós,
por nós que vivemos no verso
do verso do verso que morre.

Veleiro

Duas canções e como lidar com o pouco...

Todo mundo tem suas canções preferidas, seus discos inesquecíveis e seus livros de cabeceira. Eu não sou diferente, tenho tudo isso também, mas nada definitivo. Com o passar do tempo algumas peças mudam, algumas canções entram na relação de “música inesquecível”, alguns livros passam a ser fundamentais para minha compreensão do mundo.

Uma dessas canções eu conheci há menos de quatro anos (e ela já tinha sido composta há mais de vinte anos, vinte anos...). Lembro que era noite, lembro que estava dirigindo o carro aqui em Fortaleza, levando um amigo para reconhecer a cidade (O Adalberto mora em Brasília, mas é cearense e tem família em Fortaleza), algum lugar para jantar, coisa desse tipo. Havia mais alguém no carro conversando animadamente (não lembro quem, mas tenho quase certeza que era o Érico) quando o Adalberto colocou um cd no play do carro e deixou tocar aleatoriamente algumas músicas. Percebendo que eu já não falava por algum tempo ele me indagou: o que houve? Eu estava mudo, perdido num silêncio que sempre me acompanhou a vida inteira. Um silêncio que só eu sei o tamanho, de onde vem e o que ele faz comigo.

Respondi como se tivesse saído de uma outra dimensão, como se tivesse caído da carruagem do tempo que percorre a estrada do destino e que leva a um lugar estranho, distante, bem distante. Tão distante e tão terrivelmente próximo como a realidade que nos sopra aos ouvidos vozes de real crueza.

Então perguntei quem estava cantando, qual o nome da música, quando havia sido feita, quem havia construído a melodia, os arranjos, a letra, enfim, tudo.

As respostas vieram na seqüência. A música era “Entre Aspas” de Sérgio Natureza e Lourenço Baeta. Havia sido gravada pelo Lourenço, em 1979, num Lp com arranjos do próprio Lourenço, Dori Caymmi e Gilson Peranzzetta. Nunca esqueci esses detalhes, nunca esqueci cada verso dessa canção desde a primeira vez. Lembro que para identificar a música repeti versos inteiros como se estivesse recitando um dos poemas que trago na memória, a memória daquele menino aprisionado pela poesia que sempre fui. Lembro que o Adalberto ficou impressionado ao perceber que eu já sabia os versos de cor depois de ouvir uma única vez...

Logo consegui uma versão digitalizada do Lp inteiro, e desde então, ele passou a ser um dos álbuns mais ouvidos aqui em casa, no play do carro, no aparelhinho moderno que uso nas caminhadas, em casa antes de dormir. É um álbum maduro, consistente, com arranjos impecáveis e versos que se entranharam na minha alma de forma definitiva, violenta e estranhamente suave, muito suave. A sonoridade desse álbum fala de um tempo que não existe mais, um tempo que só existe se você fizer uma força muito grande para evitar que o mundo de fora tome conta desse nosso mundo de dentro.

Esse exercício fez desse álbum ser o que ele é: um disco absolutamente atemporal, que pode ser ouvido hoje, ou daqui a 20 anos, e o impacto será o mesmo. Desde que você, ouvinte, deixe o mundo de dentro conversar sozinho com você e seu mundo de fora.

Aliás, o exercício do conversar consigo mesmo, sozinho, está apontado nessa música “Entre Aspas”. E talvez por isso ela tenha laçado de vez meu coração. Diz assim:

“Botei teu nome entre aspas
Do sobrenome não lembro
Como não lembro das cartas
Que te mandei certo tempo.
Pra desfazer velhas tramas
Armar o quebra-cabeça
Trocar a roupa da cama
Deitar no chão sob a mesa
E ainda agüentar a conversa
Comigo mesmo sozinho...

Me tira o sono, me enfeza
De vez em quando eu definho
Angústia que me apunhala
Ante o que eu vejo e duvido
É como o corte mais fundo
Do diamante no ouvido
É como o peso na mala
De um viajante perdido
É o sofrimento infinito
De vê-la presa entre aspas...”


Quem resiste a versos como esses?

Nesse Lp também tem uma outra música muito especial, chama-se “Meio-termo”, do Cacaso e Lourenço Baeta. Essa canção me faz lembrar perdas irreparáveis. Parece que a gente nunca se prepara para definitivas despedidas, sempre pensamos que haverá outro dia, outra chance.

Essa canção é uma conversa com a morte, mas não só a morte física de alguém que amamos, mas a morte em si, a morte que está em tudo que nos cerca. A morte de sentimentos, a morte de lembranças, a morte de grandes vontades que resultaram em poucos gestos, poucas palavras, poucas atitudes. Fazer o pouco, acostumar-se com o pouco, é uma forma de morrer... aos poucos...

Quantas vezes não fazemos o pouco, não queremos o pouco, não pedimos o pouco, não nos acostumamos com o pouco? Quantas vezes morremos devagarzinho, aos poucos, com medo de sentir tudo de uma só vez?

Eis a letra dessa bela canção que também está nesse Lp de 1979:

“Ah, como tenho me enganado
Como tenho me matado
Por ter demais confiado
Nas evidências do amor

Como tenho andado certo
Como tenho andado errado
Por seu carinho inseguro
Por meu caminho deserto

Como tenho me encontrado
Como tenho descoberto
A sombra leve da morte
Passando sempre por perto

E o sentimento mais breve
Rola no ar e descreve
A eterna cicatriz
Mais uma vez
Mais de uma vez
Quase que fui feliz...

A barra do amor é que ele é meio ermo
A barra da morte é que ela não tem meio-termo”



Para quem está vivo eu recomendo: procure ouvir esse álbum, procure ouvir essas canções do Lourenço. É uma forma de lutar contra nossa mania de pouco, nosso desamparo com vida, nosso desapego aos bons sentimentos, nosso medo da morte e nossa infantil esperança de que sempre haverá amanhã para todos e que podemos consertar algo depois. Não podemos, não podemos. O depois pode não existir. E a vida segue em frente... Sempre.

Veleiro



sábado, 12 de julho de 2008

Foi-se o tempo...

Foi-se o tempo
Tempo de depuração
Tempo de escolher
E ser pelo menos uma vez
O escolhido
Foi-se o tempo
Da campainha tocando
Telefone soando
Trim-trim sem fim
Diz que não tô
Que fui pra Bagdá
Pra Blangadesh
Com o L trocado e tudo
Pra parecer de verdade
Ou de mentira mesmo
Ninguém sabe onde fica Bangladesh
Só o Willian Bonner

Foi-se o tempo
Da tv na sala
Do Cid Moreira
Da radiola 3 em 1
Dos disquinhos azuis
Das histórias infantis
Do bicho-papão
Do boi da cara preta
E da rede véia que
"Comeu foi fogo,
Foi cum nóis dois
Pra lá e pra cá"

Foi-se o tempo
Do papai noel
Da Nikka Costa
E seu On my Own
Da caixa de chocolates Garoto
De 1kg !
Do Bozo
Do Daniel Azulay
Do homem-pássaro!
Do Michael Jackson
Cantando: "Ben,
I'll never be alone
And you, my friend will see
You've got a friend in me"
Foi-se o tempo...

Foi-se o tempo
Das luzes falsas de Natal
Do chester fazendo pose de peru
No meio das alfaces
Das rezas católicas
E dos copos de cerveja sujos de farofa
Foi-se o tempo
Do primeiro gole
Do primeiro beijo
Do primeiro gôzo
Do primeiro amor
Foi-se o tempo
De depurar
De escolher
E de ser pelo menos uma vez
O escolhido.

Sergio-Veleiro

sexta-feira, 11 de julho de 2008

Cosmopolita?

Cidade de Fortaleza. Mais de 2 milhões de habitantes. Século XXI e ainda procuramos nos espelhar nas cidades brasileiras mais desenvolvidas (?). Dia 10 de julho e o provedor OI Banda Larga deixa seus consumidores sem serviço até o momento (são 20h15min) nos bairros do Papicu, Dionísio Torres e Aldeota. Às 18h00min a empresa afirmou que em 2 horas o serviço estaria restabelecido, informação de um atendente. Às 20h00min o atendimento automático reafirma a informação, ou seja, previsão prorrogada por mais 2 horas. Será que passaremos pela experiência paulistana e ficaremos 24 horas sem o serviço pelo qual pagamos? Nosso trânsito já não é mais o mesmo, será que agora os serviços de banda larga OI também entrarão em colapso?

PS: o serviço foi restabelecido por volta das 22 horas.

quarta-feira, 9 de julho de 2008

Ser feliz pode ser...

Uma conquista diária e constante. Reconhecer o sabor da vida, das coisas mais simples às mais complexas!

Quanto ao talento em ser feliz... só a prática dirá, quem se habilita?

terça-feira, 8 de julho de 2008

Uma canção chamada Madrigal

Tudo que eu quis nessa vida foi encontrar a canção certa para o momento certo. A canção e o momento, a canção e o tempo, a canção e o espaço, a canção e a distância, a canção e o encontro. E reunir tudo isso num só momento é coisa rara, muito rara. E é dessa raridade que quero falar agora. Sei que é preciso buscar muito, muito mesmo, prestando atenção nas frestas da alma, na luminosidade que sai das venezianas que nos cercam e deixar o corpo disponível para perceber a canção certa quando ela chegar.

Ouvindo Madrigal na voz do Adolar Marin, que é uma composição do Fernando Franco em parceria com o Zé Edu, eu tive essa certeza de que estava diante da canção certa no momento certo. Resolvi parar um pouco a vida por aqui hoje para escrever sobre essa canção porque ela pedia, porque ela queria, porque ela me exigia palavras que justificassem sua existência no meu dia a dia. E essa exigência muda, silenciosa, me corroia por dentro e me paralisava os sentidos. Como escrever sobre um afeto tão impalpável e tépido feito “o sol de clarear e a hora de ver o nascer das margaridas?”

Eu sei, eu sei que não se justifica o sentimento, nem a emoção, nem a vontade compulsiva de ouvir, ouvir e ouvir a mesma canção por horas, por horas, por horas. Isso é coisa que acontece e é também sorte de quem procura.

Então, nada que eu diga aqui vai justificar coisa alguma, nem vai ser motivo de vaidade dos autores, nem do cantor, nem de ninguém. É que as palavras a isso não se prestam e minha intenção nem de longe é massagear o ego de ninguém, nem elogiar o que é manifestamente belo. Até porque, como dizia o poeta pernambucano, “a beleza é triste”, e eu não estou aqui para falar de tristeza, mas de fragilidades e incertezas.

Escrevo para falar de mim mesmo, para que eu possa seguir em frente, para que eu possa desocupar o espaço que essa canção preenche no meu peito e pensamento e ficar pronto para uma nova canção. Não é despedida, não é um adeus. É só uma reverência, um convite para que ela vá ocupar um outro lugar, um lugar mais sublime, o lugar das canções inesquecíveis.

Deixar essas impressões aqui é como dizer para mim mesmo que não foi em vão, que não vai haver esquecimento e que a memória não vai roubar de mim a delicadeza desse momento. E mesmo quando desatar o nó e mesmo quando a boca já não tiver sabor de hortelã, essa música vai existir, e esse madrigal vai continuar a cantar por dentro, por dentro, por dentro. Por dentro da derme, dos vasos, das veias, dos órgãos, da alma.

Eu preciso conhecer por dentro essas igrejas da alma e voltar a rezar pela vida e pedir bem por todos nós. Mas como a canção anuncia, tanta pressa na vida me fez esquecer da própria vida, e eu escuto esse verso para me desapressar e me desatar de tantos nós.

Uma vez eu disse que essa canção por muitos dias foi a minha oração matinal e é verdade. Era acordar e deixar o violão/voz do Adolar invadir o apartamento enquanto passava o café nas primeiras horas da manhã.

Eu que desacreditei de Deus logo depois que meu pai morreu, voltei a rezar e a primeira prece do dia era essa canção. “Destino é outro dia”, não é mesmo?

Enquanto a água aquecia e o café passava, eu conversava com Deus, uma conversa só minha cheia de silêncios. Silêncios só meus que eram interrompidos por mim mesmo cantarolando “tanta pressa na vida, da gente esquecida, viver é se dar, me dou conta que ainda há outra saída de frente pro mar.”

E entre um e outro silêncio eu ouvia as cordas do violão do Adolar, a melodia do Fernando Franco entranhada na letra do Zé Edu conversando comigo, num pacto matinal, num acordo de cavalheiros nas primeiras horas da manhã, enquanto o café era servido.

Eu que ainda procuro minhas igrejas encontrei nas “igrejas da alma” a oração que eu precisava e que por certo já me procurava em forma de poesia, em forma de canção. Madrigal é e vai sempre ser um pedaço dessas manhãs, um gole desse café e mesmo que o tempo passe (e ele sempre passa), essa canção vai ter um pedaço de mim entranhada na sua sonoridade, misturada nos acordes do Fernando Franco, fundida na letra do Zé Edu e soprada na voz do Adolar.
Veleiro
P.S. Posso enviar a mp3 para quem quiser ouvir essa canção.

Pergunta do dia

ser feliz ou não é questão de talento?

cartas para a redação!

Veleiro

Cinco cds excelentes que estou ouvindo ultimamente

1. Inclassificáveis - Ney Matogrosso

2. Rubi - Paisagem Humana

3. Luanda Cozetti - young and lovely

4. Rubi - Infinito Portátil

5. Simone e Zélia Duncan - Ao vivo

Todos excelentes, acima da média, só música boa...

Veleiro

segunda-feira, 7 de julho de 2008


Nosso grupo, nossa turma, nossa irmandade por essa e por mais tantas outras vidas.


Nosso amigo Charles, que volta e meia participa dos encontros dominicais.

Generosidade

Quando o Érico me pediu para escrever sobre generosidade o primeiro pensamento que me veio foi: estou completamente atarefada e sem possibilidade de fazer além do que já me propus. Disse isso a ele, que prontamente me respondeu para fazê-lo na paz, ou seja, quando estivesse de bem comigo mesma. Pois bem, inicio por aqui. Generosidade significa ser generoso. Generoso é aquele que gosta de dar; que perdoa com facilidade; nobre, leal, valente. Tudo certo, mas para mim também significa estar em paz consigo mesmo. Como? Explico. Estando em paz consigo mesmo você pode ser generoso consigo, e a generosidade predispõe um contato prévio e uma experiência própria para por fim disseminar-se entre o alheio. Sendo generoso consigo você compreenderá o real significado da palavra e poderá exercer essa prática tão única, singela e grandiosa que é a de ser generoso(a) e praticar a generosidade. O limite próprio da generosidade é o seu limite, conhecendo-se você poderá ser mais ou menos generoso, de acordo com a escolha. Por própria experiência aprendi a ser generosa apenas quando me libertei das amarras do alheio, olhei para dentro de mim, aceitei-me e fui generosa com este ser que vos escreve. A partir de então vivi em maior comunhão com o outro, com suas dores e suas alegrias. Porque ser generoso também é aceitar a alegria do outro sem querer retê-la apenas para si, é aceitar e compartilhar da alegria alheia. Outra ligação que podemos fazer com a generosidade é a do desapego. Desapego material e emocional. Desapegar-se de algo ou de alguém também significa ser generoso, apropriando-se da generosidade de fora para dentro. Assim completa-se o ciclo. Ser generoso consigo e desapegar-se do externo. Creio que consegui expressar em palavras o que significa ser generosa para mim. É um ciclo que nunca termina, de dentro para fora e de fora para dentro, já dizia aquela bela letra da canção. E é esse o ciclo que alimenta a vida, a paz e o Deus que mora em mim e que saúda o Deus que habita em você! Namastê!

domingo, 6 de julho de 2008

A cidade que eu sou

Enquanto alguns estão indo, eu estou ficando, cada vez mais ficando, cada vez menos indo... Vou ficando porque essa é minha maneira de existir, vou existindo e vivendo na cidade onde nasci. A minha cidade não é uma cidade grande, nem chega a ser pequena, é a cidade do tamanho ideal, do tamanho dos meus sonhos que já não são tantos quanto eu gostaria que fossem.

Muitas vezes penso em partir da minha cidade para outra cidade e viajo como se não fosse voltar, como se não tivesse raízes na cidade que foi ficando para trás, cada vez mais para trás. Até que, sem esperar, acordo em outra cidade sentindo falta da minha cidade, da minha aldeia, do lugar de onde eu vim e me encontro e me reconheço.

É, eu sinto saudade da minha cidade, uma saudade tão doída que volto correndo, coração aos pulos, olhos sedentos pra ver a minha cidade. Às vezes penso que a cidade está dentro de mim e quando estou fora da minha cidade estou também um pouco fora de mim. Outras vezes percebo que estou apenas existindo na minha cidade, existindo como coisa que tem vida própria, só existindo. E vou existindo assim, sem pensar, fingindo para mim mesmo que existir é como viver, quando na verdade a existência é só uma parte da vivência, a primeira parte talvez, a que antecede tudo.

Existir é uma forma de viver sem sentir, é viver anestesiado, seguindo caminhos que levam ao lugar do ninguém, que é o lugar para onde todos estão indo na minha cidade. E por isso, às vezes, eu me sinto sozinho na minha cidade, um pouco indo também para lugar nenhum, um pouco anestesiado, um pouco sendo ninguém.

Na minha cidade é assim, as pessoas estão existindo, apenas existindo. E já não sabem mais o que é viver. Elas existem numa intensidade branda, como convém a quem só sabe existir e já não tem mais tempo para outra coisa que não seja existir. Nesses momentos penso em sair da minha cidade e procurar outra cidade, outra aldeia, ou apenas um lugar no alto da colina ou no meio do mato, onde a cidade seja apenas o que eu quiser que seja. Ou não seja. Seja apenas o que ela quiser que seja, e não seja nem cidade, nem aldeia, nem colina, nem mato. Apenas um lugar.

Um lugar onde eu possa viver e não somente existir, onde eu possa começar tudo de novo: preparar a terra, plantar sentimentos, esperar, e depois colher. E quem sabe fazer o meu próprio pão e beber o meu próprio vinho.

Aí é que percebo que essa cidade existe dentro de mim e não importa que fora de mim os carros buzinem alucinadamente e as pessoas tropecem nos seus sonhos como coisa que não fosse importante. Dentro de mim essa cidade existe e o sol nasce mais cedo e eu preparo meu próprio café, em silêncio. Um silêncio tão intenso que a cidade nem percebe que eu amanheci dentro da cidade que eu sou.

Veleiro